Felipe Neto tinha acesso privilegiado ao Twitter e promoveu censura ao jornalista Allan dos Santos

Chefe de políticas públicas do Twitter pede a chefe de segurança atenção especial a Allan dos Santos e encontro com Felipe Neto.

Por Onde A Fatos em 18/04/2024 às 17:10:21

Felipe Neto Rodrigues Vieira é um nome importante no espaço público brasileiro desde que ascendeu no YouTube no começo da década de 2010 criticando o gosto musical de adolescentes e usando palavras muito duras contra Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores.

Em uma guinada ideológica, tornou-se cabo eleitoral de Lula na corrida de 2022, que levou o petista ao terceiro mandato como presidente.

Este realinhamento culminou no convite do governo Lula para que Felipe Neto integrasse um grupo de trabalho do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, em fevereiro de 2023, dedicado ao "combate ao discurso de ódio e ao extremismo", com foco especial na regulação de redes sociais.

No mesmo mês, Felipe falou à Unesco a respeito do mesmo tema. O grupo foi apelidado de "Ministério da Verdade" por críticos do governo.

Neto é fundador do Instituto Vero, ONG parceira do Programa de Enfrentamento à Desinformação do TSE. A instituição também patrocinou eventos realizados pelo TSE contra a desinformação.

Nós (@shellenberger, @david_agape_ e eu) estamos revelando hoje que Felipe Neto tinha acesso privilegiado ao Twitter, ao ponto de um funcionário sênior ter proposto uma conversa particular entre ele e Yoel Roth, na época chefe de segurança da rede social.

Esse convite foi feito no contexto das sanções impostas pela moderação de conteúdo do Twitter ao jornalista Allan dos Santos, hoje exilado nos Estados Unidos, protegido pelo padrão mais amplo de liberdade de expressão daquele país.

Chefe de políticas públicas do Twitter pede a chefe de segurança atenção especial a Allan dos Santos e encontro com Felipe Neto.

Em 14 de junho de 2021, o então chefe de políticas públicas do Twitter, Fernando Gallo (que hoje ocupa cargo semelhante no escritório brasileiro da rede social TikTok), mandou um email para Yoel Roth, chefe de segurança da rede social.

O assunto: Gallo pedia que Roth em pessoa investigasse a conta do jornalista Allan dos Santos no Twitter, de forma "holística". O jornalista "tem sido muito problemático para nós no Brasil" e cada vez mais complicado de lidar, comentou Gallo, detalhando que Santos "insiste em postar coisas muito controversas sobre a Covid e outros conteúdos abusivos".

Gallo queria que Roth — envolvido na decisão de banir a conta de Donald Trump — banisse permanentemente a conta de Santos e que mudasse de ideia a respeito de manter no ar um tweet em que o jornalista "especulava a respeito do estado de saúde de alguém, fazendo uma conexão entre uma vacina e problemas de saúde, portanto criando dúvidas a respeito da segurança da vacina", nas palavras do chefe de políticas públicas da rede social.

O tema não é novo nos Twitter Files: nos Estados Unidos, a rede social colaborou com o governo e think tanks para remoção de conteúdo crítico às políticas de enfrentamento da pandemia, o que no país viola a Primeira Emenda da Constituição.

Email de Fernando Gallo

A decisão de Roth de não apagar o tweet de Santos irritou sobremaneira Felipe Neto, que na época cultivava uma imagem de defensor de lockdowns e outras medidas sanitárias.

Como um "pedido número 2", no mesmo email, Gallo disse que o youtuber "tem sido um antagonista e oponente do atual governo" de Jair Bolsonaro e "um forte crítico do Twitter pelo que ele considera leniência da nossa parte em aplicar as nossas regras sobre Covid".

Em outras palavras, Felipe Neto fazia pressão por uma abordagem mais dura na remoção de conteúdo.

"Ele está bem bravo", informou Gallo, se referindo a Neto, "e ficando cada vez mais barulhento, ao ponto de começar a tuitar a respeito de conversas dele conosco".

Há aqui, portanto, uma sugestão de acesso privilegiado do influenciador para fazer lobby de suas causas dentro do Twitter, na forma de conversas privadas que Gallo temia que fossem expostas.

Gallo então convidou Roth para mais uma conversa com Neto: "embora haja alguns riscos, nós e a equipe de comunicações queríamos ver se você estaria aberto a uma conversa em off com ele, para que ele sinta que foi ouvido" e "tomara, que as tensões se atenuem um pouco".

Yoel Roth aceita o convite e analisa em detalhe tweet de Allan dos Santos

Com cópia para a diretora jurídica Vijaya Gadde, Yoel Roth respondeu seis horas depois. "A resposta fácil primeiro: ficaria contente em conversar com o Felipe Neto", disse o chefe de integridade do Twitter. "Vamos seguir em um fio [de mensagens] separado a respeito da logística disso, mas se você me disser que esta é uma conversa de alto valor para eu participar, faço com prazer", completou, adicionando um símbolo de sorriso.

Email de Yoel Roth

Na mesma mensagem de 2021, Roth então estuda detalhadamente o caso de Allan dos Santos. Ele admite que o caso estava "uma bagunça" porque a equipe de moderação de conteúdo, utilizando um sistema de "bilhetes" (como se faz em atendimento ao consumidor em sites), contou errado o número de violações de Santos.

Sobre o tweet cuja permanência online irritou Felipe Neto, Roth deu o contexto que a publicação se referia à parada cardíaca que o jogador de futebol dinamarquês Christian Eriksen sofreu em 12 de junho de 2021, dois dias antes da troca de mensagens. Roth disse que "toda a narrativa" a respeito da parada cardíaca era "desafiadora". "

"Por um lado, as nossas políticas não cobrem a especulação a respeito do estado de saúde de indivíduos ou efeitos colaterais individuais em potencial da vacinação", por outro lado, o jogador "não foi vacinado, então o tweet é enganoso a respeito de se há uma possibilidade de que a vacinação poderia ter contribuído para o problema".

A publicação de Allan dos Santos cairia numa "área cinzenta", pois "o autor especula a respeito de coágulos sanguíneos e a miocardite (ambas narrativas associadas às vacinas da Covid), mas nota explicitamente que não há uma conexão direta à vacina. Não atende ao critério estrito que temos para a incitação ao medo com base em uma alegação falsa explícita", explicou Roth, que termina sua análise do tweet recomendando a aplicação de um rótulo nele e uma suspensão da conta por causa das outras violações.

Como expliquei na Gazeta do Povo, múltiplos estudos apontam a miocardite e coágulos sanguíneos como efeitos colaterais verdadeiros das vacinas, geralmente em baixa frequência, com risco que varia de vacina para vacina e por grupo demográfico. A palavra "narrativa", portanto, especialmente como justificativa para sanções à expressão de usuários nas redes sociais, não dá ao assunto a seriedade merecida.

Yoel Roth expressa preocupação com a vitória judicial temporária obtida por Allan dos Santos, na época, contra a censura no YouTube.

"Eu me preocupo que a desordem inerente desse problema poderia tornar um desafio explicar a base de uma ação de suspensão, se o fizéssemos agora".

Email assinado por Rafael Batista e Diego de Lima Gualda

Equipe jurídica do Twitter compara Allan dos Santos a Alex Jones.

Após tratativas internas da equipe jurídica do Twitter, no dia seguinte os consultores jurídicos sêniores Rafael Batista e Diego de Lima Gualda emitiram seu parecer a respeito de Allan dos Santos e a proposta de encontro com Felipe Neto.

Como sugerido antes por Gallo, Batista e Gualda concordam que Allan dos Santos é comparável a Alex Jones, influenciador americano depois condenado na Justiça local, entre outros motivos, por dizer que o ataque de um atirador à escola Sandy Hook era uma farsa.

Os especialistas recomendaram que era melhor deixar o sistema de contagem de violações "seguir seu curso, especialmente porque temos preocupações no Brasil no que toca o litígio questionando suspensões de contas, dado o foco amigável aos consumidores das cortes locais", ou seja, tribunais de instância inferior, que tenderiam a favorecer os reclamantes e não a rede social, sobre a qual imporiam "o ônus de apresentar em juízo cópias do conteúdo infringente".

Batista e Gualda acusaram Santos de manipular o sistema da rede social com intenção de espalhar desinformação, "mas em um contexto no qual, por alguma razão, falhamos em aplicar de forma estrita as políticas relevantes de maneira apropriada".

Para ele, o jornalista "inclui em seus tweets mais controversos frases com um ar de especulação, quando de fato são divulgadas de propósito para enganar". Os consultores também expressaram preocupação com a vitória de Santos contra o YouTube e o que ela significava para o Twitter, que por isso tinha que dar um forte fundamento de violação dos termos de serviço ao puni-lo.

Email assinado por Rafael Batista e Diego de Lima Gualda

Finalmente, os conselheiros jurídicos sêniores propuseram que o Twitter podia "tirar vantagem" de decisões do Supremo Tribunal Federal pela suspensão global de uma das contas de Allan dos Santos, além de aproveitar "materiais midiáticos" que corroboravam "o perfil de teórico da conspiração" do jornalista.

Os especialistas fizeram também menção indireta a tirar proveito das investigações da CPI da Covid contra Santos, expressando desconfiança de que ele já estava morando nos Estados Unidos por "turismo de difamação" (libel tourism), ou seja, para escapar das leis de seu país de origem, e cogitam se poderiam encaixar o comportamento dele de criar novas contas como "má fé no uso do serviço".

Há, contudo, uma diferença de tratamento da liberdade de expressão entre os dois países, como descobriu o Ministério da Justiça de Flávio Dino em uma reunião com o FBI em que um representante disse que os supostos delitos de Allan dos Santos eram "só palavras", como noticiado pela Folha de S. Paulo.

De fato, foi possível tirar vantagem mais tarde de decisões vindo do STF, como mostra um email de uma advogada do Twitter (não sênior, por isso aqui anonimizada), de 6 de junho de 2022, em que ela contou que o ministro Alexandre de Moraes havia ordenado a suspensão de seis contas de Allan dos Santos, além da coleta de dados associados a elas.

Moraes também queria monitoramento para evitar criação de novas contas. A advogada não questionou a ordem e disse que "vamos informar que, se identificarmos quaisquer novas contas relacionadas, vamos denunciá-las para o Supremo Tribunal Federal".

Até hoje, as contas de Santos permanecem suspensas no Brasil, apesar da promessa de Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), de reverter as ordens de Moraes.

A mesma mensagem inclui o caso da censura imposta por Moraes ao partido comunista PCO no contexto do Inquérito das Fake News.

"Felipe Neto é alguém em quem não podemos confiar para manter conversas em off"

Batista e Gualda terminaram seu email de 15 de junho de 2021 recomendando que Yoel Roth não encontrasse Felipe Neto. O encontro "apresenta riscos adicionais na nossa estratégia", pois "Felipe Neto é alguém em quem não podemos confiar completamente para manter uma conversa em off" (fora dos registros oficiais e dos olhos do público). Os consultores alertaram que o influenciador poderia tentar tirar proveito tanto do cenário do banimento de Allan dos Santos quanto da permanência do perfil.

Segunda parte do email assinado por Batista e Gualda

Os dois conselheiros jurídicos expressaram estar cientes de que o encontro, caso acontecesse, criaria "uma oportunidade para qualquer narrativa que alegue que o Twitter é enviesado por abrir um canal específico de comunicação com Felipe Neto que não está aberto "para o outro lado", que o Twitter não está seguindo seus próprios procedimentos/políticas de maneira consistente", em vez disso "respondendo a uma pressão" de um usuário famoso.

Também alertaram que o encontro poderia ser usado por Allan dos Santos em juízo contra eles. "Então, na nossa opinião, os riscos de ter essa conversa com ele [Neto] ultrapassam os benefícios em potencial", concluíram. Como deixou clara a mensagem inicial de Fernando Gallo, contudo, o canal de comunicação com Felipe Neto já estava aberto.

Pelos arquivos do Twitter, não foi possível determinar se o encontro entre Yoel Roth e Felipe Neto aconteceu.

Gallo agora trabalha para o TikTok, que firmou acordo com o TSE para remoção de conteúdo

Fernando Gallo deixou o Twitter e agora é diretor de políticas públicas do TikTok no Brasil. Em artigo publicado no blog do aplicativo chinês em fevereiro de 2022, Gallo noticiou uma parceria com o Tribunal Superior Eleitoral "para combater a desinformação". A parceria rendeu frutos: como noticiou a agência Reuters, entre 8 e 15 de janeiro de 2023, na esteira do vandalismo à Praça dos Três Poderes, o TikTok removeu mais de 10 mil "conteúdos golpistas" de seus servidores. O TikTok sofre agora um escrutínio dos parlamentares americanos, e é possível que a empresa controladora do aplicativo, ByteDance, seja obrigada a mudar o aplicativo de mãos pela relação de rivalidade entre a ditadura comunista da China e a democracia liberal americana.

A reação de Allan dos Santos e o outro lado

A Gazeta do Povo conversou com Allan dos Santos, antecipando as revelações desta edição dos Twitter Files Brasil. O jornalista comentou que ele foi "o único jornalista brasileiro que Trump retuitou. Não duvido que essa perseguição tenha aumentado após isso".

A respeito de tweets que provocaram repetidas sanções do Twitter por suposta violação dos termos de serviço, Santos explicou que "eu sei bem quando uso um discurso retórico, dialético, apodíctico ou apenas faço uma piada. Não me arrependo do que digo, pois sei bem como usar a linguagem, mesmo ciente de que os jornalistas hoje em dia não sabem diferenciar qualquer dos quatro discursos humanos. Não há com o que me arrepender".

De fato, um dos tweets de Santos que chamou a atenção de Gallo era uma piada chula, mas comum nas redes sociais, que funciona como uma "pegadinha" para curiosos. Outro tweet, contudo, parecia ridicularizar Jean Wyllys por sua homossexualidade. Porém, não são todos os LGBT que concordam com a criminalização de palavras ofensivas a eles. O escritor desse segmento Jamie Paul, em artigo publicado pela Gazeta do Povo, por exemplo, defendeu que "o Brasil erra ao querer prender e censurar os homofóbicos". O artigo original de Paul foi publicado pelo site do Instituto Americano de Bissexualidade, fundado nos EUA em 1998.

A reportagem entrou em contato com Felipe Neto, Gallo, Batista e Gualda, que ainda não se manifestaram. O espaço permanece aberto para sua manifestação.

Fonte: Gazeta do Povo

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